Publicação: 23/08/2017
País
registra 10 estupros coletivos por dia; notificações dobram em 5 anos
“Cala a boca, se alguém ouvir sua voz vai saber que é tu”, grita um.
“Tapa o rosto da novinha”, diz o outro. Em vídeo que circulou nas redes
sociais, quatro rapazes estupram uma menina de 12 anos em uma comunidade
na Baixada Fluminense, no Rio.
A 2.400 km dali, em Uruçuí (sul do Piauí), uma grávida de 15 anos foi
estuprada por três adolescentes, e o namorado, morto na sua frente.
Retirada de sua casa em Presidente Epitácio, no interior paulista, uma
mulher de 48 anos foi estuprada por quatro rapazes. Eram seus vizinhos.
Em Santo Antônio do Amparo, em Minas Gerais, uma dona de casa de 31 anos
foi atacada, estuprada e morta a caminho de casa. Quatro homens
confessaram os crimes.
Em cinco anos, mais do que dobrou o número de registros de estupros
coletivos no país feitos por hospitais que atenderam as vítimas.
Dados inéditos do Ministério da Saúde obtidos pela Folha apontam que as
notificações pularam de 1.570 em 2011 para 3.526, em 2016. São em média
dez casos de estupro coletivo por dia.
Os números são os primeiros a captar a evolução desse tipo de violência
sexual no país. Na polícia, os registros do crime praticado por mais de
um agressor não são contabilizados em separado dos demais casos de
estupro.
Desde 2011, dados sobre violência sexual se tornaram de notificação
obrigatória pelos serviços públicos e privados de saúde e são agrupados
em um sistema de informações do ministério, o Sinan.
Acre, Tocantins e Distrito Federal lideram as taxas de estupro coletivo
por cem mil habitantes –com 4,41, 4,31 e 4,23, respectivamente. Esse
tipo de crime representa hoje 15% dos casos de estupro atendidos pelos
hospitais –total de 22.804 em 2016.
Os números da saúde, contudo, representam só uma parcela dos casos.
Primeiro porque a violência sexual é historicamente subnotificada e nem
todas as vítimas procuram hospitais ou a polícia e, em segundo lugar,
porque 30% dos municípios ainda não fornecem dados ao Sinan.
“Infelizmente, é só a ponta do iceberg. A violência sexual contra a
mulher é um crime invisível, há muito tabu por trás dessa falta de
dados. Muitas mulheres estupradas não prestam queixa. Às vezes, nem
falam em casa porque existe a cultura de culpá-las mesmo sendo as
vítimas”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada).
SUBNOTIFICAÇÃO
Estudos feitos pelo Ipea mostram que apenas 10% do total de estupros são
notificados. Considerando que há 50 mil casos registrados por ano (na
polícia e nos hospitais), o país teria 450 mil ocorrências ainda
“escondidas”.
Segundo a socióloga Wânia Pasinato, assessora do USP Mulheres, os dados
da saúde sobre estupro coletivo mostram que o problema existe há muito
tempo, mas só agora está vindo à tona a partir de casos que ganharam
destaque na imprensa nacional.
Entre eles está o de uma uma jovem de 16 anos do Rio, que foi estuprada
por um grupo de homens e teve o vídeo do ataque postado em redes
sociais, e outro ocorrido em Castelo do Piauí (PI), em que quatro
meninas foram estupradas por quatro adolescentes e um adulto. Danielly,
17, uma das vítimas, morreu.
“O estupro coletivo é um problema muito maior e que permanecia
invisível. Há uma dificuldade da polícia e da Justiça de responder a
essa violência”, diz Wânia.
Para a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília,
o aumento de casos de estupro coletivo é impactante. “É um crime de
bando, de um grupo de homens que violenta uma mulher. Essa
característica coletiva denuncia o caráter cultural do estupro.”
“É a festa do machismo, de colocar a mulher como objeto. O interesse não
é o ato sexual, mas sim ostentar o controle sobre o corpo da mulher”,
diz Cerqueira, do Ipea.
O pesquisador é um dos autores de estudo sobre a evolução dos estupros
nos registros de saúde. Nele, há breve menção ao crime cometido por dois
ou mais homens. Crianças respondiam por 40% das vítimas, 24% eram
adolescentes e 36%, adultas.
Em setembro de 2016, J.C., 19, de São Paulo, foi abordada por um homem
armado em um ponto de ônibus na zona norte da capital.
Levada até uma favela, foi estuprada por cinco homens durante quatro
horas. “Eu chorava e pedia pelo amor de Deus que parassem. Eles me
batiam e mandavam eu calar a boca. Fizeram o que quiseram e depois me
deixaram numa rua deserta”, contou em relato por e-mail à Folha.
Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, do Hospital Pérola Byington (SP), o
trauma emocional de uma mulher que sofre estupro coletivo é muito maior,
especialmente quando a violência resulta em gravidez –o aborto é legal
nessas situações.
“Nesses atos, os criminosos costumam ter práticas concomitantes. O
sentimento de vergonha e de humilhação da mulher é muito maior, ela tem
dificuldade de falar sobre isso. Às vezes, só relata quando engravida.”
Outro fato que tem chamado a atenção em algumas das ocorrências de
estupros coletivos é a gravação e a divulgação de imagens do crime. A
Folha pesquisou 51 casos noticiados pela imprensa nos últimos três anos.
Em pelo menos 14 foram publicados vídeos em redes sociais.
O caso da menina de 12 anos estuprada no Rio só foi denunciado à polícia
quando a tia recebeu as imagens no celular. A garota foi ameaçada para
ficar em silêncio.
“É perturbadora essa necessidade que os agressores têm de filmar a
violência. É como se fosse um souvenir da conquista”, diz Debora Diniz.
Para Wânia, do USP Mulheres, essa prática parece ter caráter
ritualístico. “É o estupro sendo mostrado como troféu”, afirma.
Fonte: Folha de S. Paulo
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