Publicação: 05/04/2022

 

 

Privatizar Eletrobrás agrava desindustrialização

 

Usina Hidrelétrica de Marimbondo/Furnas/Divulgação


“O controle das grandes usinas hidrelétricas é estratégico. Por esta razão, até nos Estados Unidos, as grandes hidrelétricas pertencem e são operadas por entidades públicas”, afirma Joaquim Francisco de Carvalho, mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP


“A energia elétrica é um monopólio natural, do qual dependem a produção industrial, as comunicações, o ensino, a conservação dos alimentos, ou seja, praticamente tudo. Assim, as tarifas elétricas não devem visar à maximização de lucros para grupos privados, pois influenciam todos os custos da economia, podendo gerar tendências inflacionárias, inviabilizar indústrias e excluir do consumo as famílias menos favorecidas“, afirma o mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP Joaquim Francisco de Carvalho, em artigo publicado no site Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético), que reproduzimos a seguir.


Com privatização da Eletrobrás, o Brasil voltará a ser um mero exportador de commodities


JOAQUIM FRANCISCO DE CARVALHO


Dentre as estatais do setor elétrico, apenas a Eletrobrás – que pertence majoritariamente à União – e as empresas estaduais Copel, Cemig e Celesc não foram privatizadas.


A Eletrobrás aplica grande parte de seus lucros na expansão e modernização do sistema e paga ao Tesouro dividendos de 2 bilhões de reais por ano, em média.


Estes resultados ainda poderão melhorar, desde que a Eletrobrás se desvencilhe das influências “políticas” e passe a ser dirigida por profissionais rigorosamente selecionados, que trabalhem pela empresa, sem visar a um obscuro processo da privatização.


Depois de um ajuste administrativo, o governo celebraria contratos de gestão com a Eletrobrás, nos quais, além de metas quantitativas, seriam fixadas as obrigações e os direitos de ambas as partes. Por esses contratos, o governo não poderia decidir pela Eletrobrás, no sentido de praticar tarifas abaixo do previamente calculado na base do custo + lucro.


É preciso que os governantes respeitem as diferenças que há, o espaço privado e o espaço público.


O espaço privado é ocupado por empresas e estabelecimentos industriais, financeiros, comerciais e outros, que têm entre os seus objetivos o de gerar lucros.


No espaço público ficam atividades não lucrativas, como a diplomacia, a segurança nacional, o ensino e a pesquisa científica, a saúde pública, o policiamento etc., além de certas utilities, vitais para as demais atividades e que são monopolizáveis.


“O espaço privado é ocupado por empresas e estabelecimentos industriais, financeiros, comerciais e outros, que têm entre os seus objetivos o de gerar lucros. No espaço público ficam atividades não lucrativas, como a diplomacia, a segurança nacional, o ensino e a pesquisa científica, a saúde pública, o policiamento etc., além de certas utilities, vitais para as demais atividades e que são monopolizáveis”


Ora, a energia elétrica é um monopólio natural, do qual dependem a produção industrial, as comunicações, o ensino, a conservação dos alimentos, ou seja, praticamente tudo. Assim, as tarifas elétricas não devem visar à maximização de lucros para grupos privados, pois influenciam todos os custos da economia, podendo gerar tendências inflacionárias, inviabilizar indústrias e excluir do consumo as famílias menos favorecidas.


Segundo uma recente pesquisa de opinião feita no Reino Unido, 77% dos consumidores querem que sejam reestatizadas as empresas de energia elétrica que foram privatizadas pela premier Margareth Tatcher.


Suas principais queixas referem-se à baixa qualidade dos serviços e às elevadas tarifas. (Ver: http://url.gratis/QVnsd).


“No Reino Unido, 77% dos consumidores querem que sejam reestatizadas as empresas de energia elétrica que foram privatizadas pela premier Margareth Tatcher”


Queixas semelhantes surgirão no Brasil, com a privatização da Eletrobrás.


Quase 70% da eletricidade consumida no Brasil vêm de usinas hidrelétricas, as mais importantes das quais pertencem à Eletrobrás. A geração de energia é apenas uma das utilidades dos reservatórios hidrelétricos, ao lado de outras, importantes, como o abastecimento de água, a regularização dos rios, a irrigação etc. Além da manutenção da integridade das próprias barragens, todos os usos dos reservatórios requerem importantes despesas permanentes em preservação ambiental e segurança das próprias barragens – e a experiência mostra que investidores privados relutam em fazer tais despesas, como foi o caso com as catástrofes de Mariana e Brumadinho.


 

“O controle das grandes usinas hidrelétricas é estratégico. Por esta razão, até nos Estados Unidos, as grandes hidrelétricas pertencem e são operadas por entidades públicas como a Tennessee Valley Authority, a North Western Energy Company e, principalmente, pelo US Army Corps of Engineers, que é o maior operador-proprietário de usinas hidrelétricas naquele país, com 75 usinas e capacidade instalada de 21.000 MW”


Devido aos problemas advindos das privatizações feitas no governo do presidente FHC, com o objetivo (inatingível) de converter em mercadoria um monopólio natural como a energia elétrica, a Eletrobrás vinha arcando com grandes prejuízos, por ter sido obrigada absorver os resultados negativos do sistema.


Não por acaso, esses prejuízos alimentaram grandes lucros para os intermediários não produtivos, que foram introduzidos com o modelo de sistema elétrico adotado pela administração FHC.


A Eletrobrás é a maior empresa de energia da América Latina, sendo responsável por cerca de 30% da energia consumida no Brasil. Seu parque gerador compõe-se de 48 usinas hidrelétricas, 62 eólicas, 12 termelétricas, duas termonucleares e uma central fotovoltaica.


As hidrelétricas do grupo Eletrobrás (composto pelas subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e metade de Itaipu) têm idades em torno de 30 anos, portanto praticamente todo o capital nelas investido está amortizado, de modo que a média ponderada dos custos de geração de todas as unidades do parque gerador da empresa fica em cerca de R$ 39/MWh.


O grupo Eletrobrás responde por uma oferta da ordem de 170 milhões de MWh por ano. Eliminando-se os intermediários não produtivos, esta energia poderia ser repassada diretamente às distribuidoras, por uma tarifa de R$ 250/MWh. Portanto, o lucro do grupo Eletrobrás pode chegar a R$ 35,7 bilhões por ano.


Inexplicavelmente, o governo decidiu privatizar esse lucro, sem apresentar um motivo lógico para isto, até porque tal privatização significa apenas transferir para grupos privados, o controle daquilo que já foi construído pelo Estado, o que não significa expandir o sistema.


Nada impede que grupos privados invistam em projetos novos, tomando por referência as tarifas de Eletrobrás, devidamente atualizadas.


Em vez de privatizar o que foi construído com dinheiro público, o governo deveria investir o lucro da Eletrobrás para expandir e modernizar o próprio sistema elétrico.


As termelétricas a gás ficariam de reserva para casos de crise hídrica e aquelas a carvão seriam desativadas, cedendo lugar aos parques eólicos.


Por força do processo de privatização iniciado na gestão FHC, atualmente o sistema elétrico é quase todo privado. Só no segmento de geração, cerca de 70% dos ativos estão privatizados. No segmento de transmissão a Eletrobrás tem grande parte das linhas, mas controla e opera apenas uma pequena parte. E as principais distribuidoras já foram privatizadas.


O resultado dessa quase completa privatização foi o oposto do prometido pelo governo.


Os consumidores têm enfrentado grandes aumentos na frequência e na duração dos cortes de energia.


O setor privado investiu muito abaixo do esperado, obrigando o governo a continuar investindo na expansão do sistema.


E, em vez de mais baratas, as tarifas para o setor residencial subiram mais de 55% e as do setor industrial subiram cerca de 130% acima da inflação, provocando a falência de inúmeros estabelecimentos industriais e desempregando centenas de engenheiros e milhares de operários qualificados, dando sequência ao processo de desindustrialização do país, que começou no governo Collor e ganhou impulso na era FHC. Por força desse desmonte do setor industrial, o Brasil está voltando a ser um simples exportador de commodities.

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JOAQUIM DE CARVALHO, mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP, foi engenheiro da CESP, diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear) e pesquisador associado ao IEE/USP.


Fonte: Hora do Povo